Transtorno depersonalidade bordeline
Transtorno de Personalidade Borderline (TPB): Concepções Clínicas, Neurobiológicas e Psicodinâmicas
O Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) constitui um quadro psicopatológico complexo, caracterizado por instabilidade afetiva, impulsividade recorrente, padrões interacionais caóticos e perturbações marcantes na identidade e na autoimagem. Conforme descrito pelo Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (APA, 1994; APA, 2013), trata-se de um transtorno estruturado em padrões rígidos e disfuncionais de funcionamento mental e comportamental que afetam profundamente a regulação emocional, o processamento interpessoal e a integração do self.
Autores como Kernberg (1975, 1984), Linehan (1993), Gunderson (2001) e Zanarini (2000–2007) destacam que o TPB é um dos transtornos de personalidade mais estudados, possuindo etiologia multifatorial e expressões clínicas intensas, frequentemente associadas a risco aumentado de autolesão e suicídio.
Núcleo psicopatológico: instabilidade, impulsividade e falhas de integração do self
Instabilidade afetiva
A instabilidade emocional constitui o eixo definidor do TPB e envolve hiper-reatividade afetiva, oscilação rápida entre estados emocionais e dificuldade significativa em retornar a um nível basal de estabilidade interna. Linehan (1993) descreve que esses pacientes apresentam baixa tolerância à frustração, sensibilidade ampliada a sinais sociais e tendência a respostas intensas frente a estímulos mínimos.
Kernberg (1984) acrescenta que a organização borderline do self envolve representações internalizadas não integradas de si e dos outros, resultando em flutuações abruptas entre idealização e desvalorização. Essa dinâmica interfere diretamente no controle dos afetos e na percepção coerente de si mesmo.
Impulsividade
A impulsividade, extensamente documentada por Siever e Davis (1991) e Lieb et al. (2004), reflete falhas nos circuitos cerebrais responsáveis pelo controle inibitório e pela tomada de decisão. A impulsividade manifesta-se em diversos domínios: gastos compulsivos, direção temerária, envolvimento sexual de risco, compulsão alimentar, abuso de substâncias e comportamentos autolesivos.
A impulsividade funciona, frequentemente, como um mecanismo de redução da angústia — tentativa imediata de aliviar tensões insuportáveis diante de ameaças percebidas à estabilidade psíquica.
Perturbações na identidade
A literatura psicodinâmica (Kernberg, 1984; Jacobson, 1964; Masterson, 1981) descreve que o TPB envolve falhas na consolidação da identidade, caracterizadas por:
- sensação crônica de vazio,
- mudanças abruptas em metas e valores,
- autoimagem inconsistente,
- dificuldades em sustentar um sentimento contínuo de existência.
Fonagy e Bateman (2004), por meio da Teoria da Mentalização, sugerem que esses pacientes têm prejuízos em interpretar adequadamente estados mentais próprios e alheios, especialmente em situações de estresse, o que contribui para interpretações distorcidas e respostas afetivas desproporcionais.
Sensibilidade ao abandono e reatividade interpessoal
O medo de abandono como eixo fundamental
Gunderson (2001) postula que o medo de abandono é o sintoma nuclear do TPB. Pequenas alterações nas rotinas relacionais — atrasos, mudanças de planos, interrupções, falhas de contato — são frequentemente interpretadas como rejeição e desencadeiam estados intensos de ansiedade.
Para Kernberg (1984), esse medo é expressão de uma vulnerabilidade estrutural profunda do self. A ausência do outro é vivida não como separação tolerável, mas como aniquilamento psíquico, perda da coesão interna e risco imaginado de desintegração.
- Reações emocionais e comportamentais
Frente à ameaça de perda, surgem: Episódios de raiva intensa (Gunderson & Phillips, 1991), clivagem do objeto (idealização ↔ desvalorização), tentativas desesperadas de manter proximidade, explosões emocionais com perda temporária do controle racional (Linehan, 1993), comportamentos autolesivos como “comunicação desesperada” (Favazza, 1998).
Perspectiva neurobiológica e funcionamento cerebral
Estudos de neuroimagem e neurofisiologia ampliaram a compreensão do TPB, identificando padrões característicos de funcionamento cerebral.
Hiperatividade da amígdala
Pesquisas de Schmahl et al. (2003), Herpertz (2001) e Silbersweig et al. (2007) demonstram hiper-reatividade da amígdala frente a estímulos emocionais negativos, explicando: Respostas afetivas exageradas, percepção ampliada de risco social, intensidade emocional desproporcional aos eventos.
Hipoatividade do córtex pré-frontal
Estudos de Minzenberg et al. (2008) relatam disfunção em áreas pré-frontais responsáveis por: Inibição comportamental, planejamento, julgamento, modulação da impulsividade.
Essa combinação (amígdala hiperativa + pré-frontal hipoativa) resulta em um sistema emocional vulnerável e de difícil regulação.
Integração neurobiológica
Lieb et al. (2004) afirmam que o TPB envolve processos neurobiológicos semelhantes aos observados em transtornos exibindo impulsividade e instabilidade emocional, apontando para déficits nos sistemas serotoninérgicos e noradrenérgicos.
Etiologia: modelo multifatorial
O TPB não possui causa única. A literatura indica uma interação complexa entre fatores biológicos, psicológicos e ambientais.
Fatores genéticos
Estudos de Torgersen (2000) e Distel et al. (2008) indicam herdabilidade entre 40–60%, sugerindo forte contribuição genética para impulsividade e reatividade emocional.
Fatores ambientais e experiências adversas
Zanarini et al. (2000; 2007) evidenciam que pacientes com TPB apresentam maior prevalência de: Negligência emocional, abuso físico e sexual, ambientes familiares instáveis, figuras cuidadoras imprevisíveis ou invalidantes.
Linehan (1993) denomina isso ambiente invalidante, que compromete a aprendizagem de estratégias adequadas de regulação emocional.
Falhas no desenvolvimento do self
Autores da psicologia do self, como Kohut (1971) e Stolorow (1987), descrevem que falhas no espelhamento empático durante a infância resultam em fragilidade do self e dependência intensa de validação externa.
Mahler (1975) acrescenta que dificuldades nas fases de separação-individuação podem gerar medos profundos de abandono e fusão, característicos do TPB.
Comportamentos auto lesivos e tentativas de suicídio
A literatura demonstra que entre 60% e 80% dos indivíduos com TPB apresentam comportamento autolesivo, e aproximadamente 10% chegam ao suicídio (Oldham, 2006; Paris, 2002).Função regulatória da autolesão
Favazza (1998) e Klonsky (2007) descrevem que a autolesão não é apenas tentativa de morte, mas: Um modo de reduzir sofrimento emocional intenso, mecanismo de autorregulação, tentativa de restaurar o sentimento de existência, forma de comunicação do desespero psíquico. A impulsividade suicida
Paris (2002) enfatiza que a impulsividade aumenta o risco de ações súbitas, especialmente quando combinada com estados de desespero, raiva e sensação de abandono.
Considerações finais
O TPB representa um modelo clínico de alta complexidade, envolvendo: Instabilidade marcada, falhas de integração psíquica, sensibilidade extrema ao abandono, desregulação neurobiológica, padrões interacionais caóticos.
A compreensão contemporânea integra modelos psicodinâmicos (Kernberg, Masterson, Jacobson), cognitivo-comportamentais e biossociais (Linehan), e neurobiológicos (Lieb, Silbersweig, Schmahl), reconhecendo que o TPB emerge de uma combinação de vulnerabilidades biológicas e experiências relacionais precoces.